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sexta-feira, abril 30, 2004

Aparentemente um deputado resolveu processar Millor Fernandes pelo fato de
imaginar que o escritor estaria o chamando de IDIOTA, vejam o texto e entendam melhor. Muito bom.


Dobre a Língua
Parte II

Por Millôr Fernandes

Minha correspondência com a advogada Silvana Takano, do departamento jurídico da FOLHA (de São Paulo) quando Aldo me processou:

Silvana Takano: li a acusação que o deputado me faz e, criminoso no jornal, resolvi responder pelo jornal. Envio o artigo pra vocês (ainda vou corrigir alguma coisa) fazerem dele o uso jurídico que bem entenderem. Não sei como vocês, tecnicamente, encaram o processo. Pra mim, laicamente, ele está "prejudicado" de saída. Por este primeiro item:

1) Reproduzindo texto supostamente meu, o deputado bota, como meu, se referindo a ele: "Ele sabe do que está falando? Quanta idiotice!" Ora, eu escrevi idioletice. Acredito, portanto, que não cometi o "crime" de que o deputado e sua advogada Zilah Joly me acusam. O deputado nem leu corretamente o que escrevi e confundiu idioletice com idiotice, o que é uma comprovação da mesma.

2) O título Não Passes da Corrupção (e não estou me retratando) quer dizer exatamente o que diz. Ressoa a Não Passes dos Sapatos, recomendação que se faz a quem trata de um assunto de que não entende, extrapolando do que entende ou devia entender. Exemplo clássico: o sapateiro, de quem o pintor aceitou a crítica sobre os sapatos de seu quadro, quando resolve criticar o quadro todo.

3) Não coloquei o nome do autor já que não era o caso, em se tratando de um absoluto leigo no assunto (e anônimo no geral) que pretendia legislar sobre a língua nossa. Não dele, vê-se. Ele não parece entender do que está falando. Será que o Vossa Excelência aceitaria pequena sabatina, tipo português lecionado no segundo ginasial? Será que toparia um ditado de 10 linhas?

4) Bem, o "comprometimento da honorabilidade" do moço, pra ser tão grave, precisaria, pelo menos, do uso do seu nome. Sem o uso do nome a desonra fica restrita ao convívio de seus pares (e ímpares) que devem conhecer muito bem sua honra, e cultura, geral e específica. E saber que o jornalista que o desonra é, no mínimo, um leviano. Portanto sem poder de desonrá-lo.

5) Mesmo acabada a imunidade geral, o parlamentar tem direito total (compreende-se que até, ocasionalmente, ofensivo ou resvalando por aí) ao uso de sua palavra. Não pode ser condenado por isso. E o jornalista, que vive só e apenasmente da palavra, não pode nem discordar da legislação semântica do parlamentar sem ficar sujeito a pagar R$ 52.660,00?

6) Não reconheço autoridade (mais isso é coisa minha) lingüística nem na ABL, nem na OAB. Há profissionais do ramo em ambas as entidades, mas à maioria eu não entregaria meu cachorro lingüístico pra passear na praia semântica. Preferiria que o caso - em sua parte específica - fosse julgado por entidades mais especializadas.

7) Embora não seja necessário, devido a se atribuir alto conhecimento da língua que defende, explico aqui ao nobre deputado o que significa a palavra idioletice. É palavra criada por mim com sentido evidente. Mas apenas coloquei a desinência ice na palavra IDIOLETO. Ah, e o que é idioleto? Vejamos, deputado:

Aurélio:
Idioleto: S. m. E. Ling.
1. A fala de um único indivíduo.

Houaiss - (definição mais barroca):
Idioleto: Sistema lingüístico de um único indivíduo, que reflete suas características pessoais, os estímulos a que foi submetido, sua biografia, etc. (Pertence ao campo da langue, e não da parole, porque trata de particularidades lingüísticas constantes, não fortuitas. Depreendido de dialeto.

Il Nuovo ZINGARELLI - Vocabolario della lingua italiana:
Idiolétto: L'insieme degli usi di una lingua carateristtico di um dato individuo, in un determinato momento.

The Oxford Companion to the English Language:
Idiolect: (1940. From greek, idios personal, and - lect as in dialect). In linguistics, the language special to an individual, sometimes described as a "personal dialect".

The Cambridge Encyclopedia of Language. David Crystal:
Idiolect: Probably no two people are identical in the way they use language or react to the usage of others. In recent years sociolinguists have begun to use lect as general term in this way.

A Suplement to the Oxford English Dictionary:
Idiolect: 1948. B. Bloch in Languages XXIV.7. The totality of the possible utterances of one speaker at one time in using one language to interact with other speaker is an idiolect.

Diccionário de uso del espanol actual:
Idiolecto: En lingüistico, modo característico que cada hablante tiene de emplear su lengua. (Importante, deputado: o prefácio deste dicionário é de Gabriel García Márquez. Vale a pena ler.) 1948.

Archivum linguisticum:
Idioletical diversity is an inevitable result of the productivity inherent in every single individual linguistic habits.

8) PS. Ah, Deputado José Aldo Rebelo e sua advogada, Dra. Zilah Joly: na página 07, linha 6, ante-penúltima palavra da linha, de vosso brilhante arrazoado, existe um à (a craseado), que mostra certo desconhecimento da língua normatizada. Eu não ligo não, defendo mesmo a tese de que a crase não existe em português do Brasil, mas tem gente no foro que repara. PPS.

É famoso; Monsieur Jourdain, o novo-rico de Moliére, querendo comprar cultura prèt-à-porter, ficou besta quando o professor contratado lhe explicou o que era prosa: "Prosa é isso, Mestre? Quer dizer que eu falo prosa sem saber?"

Me processando agora e me obrigando a esta dissertação, o deputado Aldo Rebelo prestou enorme serviço a todos vocês, amáveis (e grosseiros também, por que não?) leitores. De hoje em diante poderão empinar o nariz diante de pessoas ignorantes e dizer com orgulho: "Eu falo idioleto sem saber."

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